sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Vivre sa vie: uma incursão




“Paul: __ Você não fala de outro assunto que não seja sobre si mesma.
Nana: __ Você é horrível.
Paul: __ Não sou horrível. Estou triste.
Nana: __ Não estou triste, Paul. Eu sou horrível.”


Esta é parte do diálogo que dá início ao desenvolvimento de “Viver a vida”, um filme que, a partir de então, leva o expectador a acompanhar o declínio patético de Nana, uma atriz aspirante que decide deixar-se guiar pelo sonho de viver através da arte, ao trocar o ordinário seio familiar pelas ruas insinuantes e frias de Paris. A conversa transcrita a cima acontece numa cafeteria, onde Nana, muito fleumática, entre cigarros, moedas e uma partida no fliperama, corrobora o fim de seu casamento com Paul _ uma separação que a moça atribui ao fato de seu marido, nela, não enxergar nada além do comum.
Para Paul todos os seres humanos são iguais, e justamente esta idéia, Nana não pode suportar: “Como seria possível amar alguém e não considerá-lo especial, extraordinário?” Mesmo levando em conta a segurança do casamento, como continuar a viver com um homem tão diferente dela, que, em função disso, já não amava mais? Através do rompimento, Nana pensa fazer a coisa certa _ “Eu quis ser muito correta”_, agindo com sinceridade em relação a si mesma, sendo auto-afirmativa, pondo fim na barganha de sua alma, antes constantemente oprimida pelo conforto desesperador do matrimônio. E assim, com os olhos embebidos em lasso, ela se depara com as dificuldades tremendas, _ o que sempre se encontra quando se decide desafiar as forças do mundo objetivo _, ao se ver sem dinheiro e completamente só, ladeada apenas por um sonho_ uma presença incapaz de lhe dar calor, pagar a conta de seu aluguel e comprar sua comida. A audácia na tentativa de reaver sua alma, como conseqüência, lhe traz muitas privações, e acaba por obrigá-la a vender o próprio corpo.
Os objetivos que levam Nana a fechar-se para Paul como mulher, são os mesmos que a forçam, como prostituta, a abrir-se para uma miríade de homens desconhecidos nas ruas parisienses. Mesmo com isso, ela se mostra sempre consciente, autoproclamando-se senhora da própria vida: “Se ergo minha mão, eu sou responsável. Se viro minha cabeça, eu sou responsável. Se estou infeliz, eu sou responsável...”. Acredita na possibilidade de produzir a diferença, tal como o fez o marido de Rebeca, uma de suas colegas prostitutas, o qual, após abandonar mulher e filhos, fez carreira como ator de cinema nos Estados Unidos. Exemplo no mínimo motivador para Nana, mesmo pela semelhança com a sua história, que, talvez, entre outras poucas e, até mesmo, incompreensíveis causas, ainda a mantinha firme em sua caminhada sofista pelas ruelas cinzentas de sua realidade inóspita.
Muito embora a personagem central de “Viver a vida” tenha fé no poder de comandar seus atos e administrar as conseqüências destes, o filme demonstra justamente o oposto: Godard realizou um trabalho belíssimo, de ótica muito crua e naturalista, expondo como o ser humano pode chegar a ser passivo e apaticamente permissivo em situações de extrema subjugação, como no caso de Nana _ uma folha morta sendo arrastada pelo vento do outono _, que segue perdendo sua humanidade à medida que é inserida em um contexto social abjeto, através do qual se transforma em um produto com preço estipulado em cifras exatas, com tempo de vida útil e tudo mais.
Quando Nana é reanimada pela chance de um novo amor, é demasiado tarde. O processo de coisificação de sua pessoa já havia retirado-lhe algumas das mais importantes faculdades humanas, entre elas a vontade e o direito de controlar os próprios passos. E à mercê de uma corrente externa, tão alheia aos seus sentimentos e sonhos, ela é estupidamente transportada para morte. Promovido assim o fim de uma vida curta e sem glória.
Em “Viver a vida” presencia-se a busca incessante de um ideal, que se dá em detrimento da existência. Como o que ocorre com o Pintor d”O retrato oval” (personagem do conto de Edgar Alan Poe, genialmente inserido no filme), que, tão obcecado por sua criação, é dominado pela compulsão e, no anelo de reproduzir o milagre da vida, obtém tão somente a consumação da morte. Exatamente o que acontece com Nana.
“Nana: __ Escapar é um sonho impossível.
Rebeca: __ Por quê?
Nana: __ É a vida.”

Nenhum comentário: