sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Parafresando Eduardo Peret na prova do ENEM




Apresento agora um texto que elaborei para a redação do ENEM, que tinha como tema “Os desafios de conviver com as diferenças”. Como vocês poderão ver, não me preocupei em apresentar alternativas para a harmonização dos relacionamentos humanos, pois a mim não se imputa tal obrigação, tentei mesmo expor como reconheço as verdades concernentes às tentativas falhas da promoção dessa ordenação. Eduard Peret está no título desta postagem por que foi através de uma idéia já apresentada por ele que desenvolvi meus argumentos seguintes:

Diferente nulo

“Amar o próximo como a si mesmo” é um, senão o maior dos princípios cristãos mais difundidos meio a civilização ocidental, e este ideal é base para uma diretriz padrão que tenta se aplicar como modelo para a promoção da convivência harmônica, não só entre os integrantes do séqüito do Novo Testamento, mas, também, em quase todos os grupos humanos existentes sobre a face da Terra. Em todas as civilizações contemporâneas, seus membros são ensinados, e, por que não dizer, adestrados por uma educação lapidante que incuti uma espécie de altruísmo ascético em suas vidas, e é através desses moldes civilizatórios que o homem, ser originalmente selvagem, é levado a temer o preço de suas atitudes_ temer o castigo pela concretização de seus instintos. Ou seja, o ser humano civilizado é resultado de um processo laborioso de refinamento, e está inserido em um mundo que o obriga a creditar no dever de amar o próximo com a si mesmo, quando na verdade, em sua natureza, tudo o que mais lhe importa é a perpetuação de sua própria existência, mesmo que esta ocorra em função da destruição dos humanos que lhe rodeiam. É exatamente pelo fato do homem ansiar por sua auto-afirmação que se torna tão difícil, e em muitos casos até impossível, para ele conviver com a diferença. Em todas as relações com o externo, o homem busca pelo reflexo de sua própria imagem, desta forma, todos os elementos em desacordo com suas projeções são ignorados/ desprezados.
A uniformização/ massificação de miríades e miríades da espécie humana é uma grande façanha dos preceitos judaico-cristãos, e este fenômeno não faz com que os humanos sejam mais tolerantes uns com os outros, pelo contrário: os grupos sociais são constituídos dentro de unidades doentias, e para seus integrantes, presos em uma completude ilusória, *a regra de fato nunca foi aceitar e amar as diferenças do próximo, mas sim, a qualquer custo, torná-lo igual a eles, e, só depois disso, amá-lo então*.


* Paráfrase de Peret com a qual introduzo e concluo o texto. Fiz uso de um argumento, já antes tão bem explorado pelo Edu, para dar uma outra direção ás idéias consoantes com a proposta do teste. Os textos maravilhosos desse cara podem ser encontrados aqui : http://ocabideiro.blogspot.com/2007_08_01_archive.html
A imagem da postagem é trabalho de David LaChapelle. Chic, né?

Nana e a filosofia

http://www.youtube.com/watch?v=co-c5gPWfiM

"... existe um tipo de devoção que impede uma pessoa de falar bem, até alguém ver a vida com desinteresse."

Vivre sa vie: uma incursão




“Paul: __ Você não fala de outro assunto que não seja sobre si mesma.
Nana: __ Você é horrível.
Paul: __ Não sou horrível. Estou triste.
Nana: __ Não estou triste, Paul. Eu sou horrível.”


Esta é parte do diálogo que dá início ao desenvolvimento de “Viver a vida”, um filme que, a partir de então, leva o expectador a acompanhar o declínio patético de Nana, uma atriz aspirante que decide deixar-se guiar pelo sonho de viver através da arte, ao trocar o ordinário seio familiar pelas ruas insinuantes e frias de Paris. A conversa transcrita a cima acontece numa cafeteria, onde Nana, muito fleumática, entre cigarros, moedas e uma partida no fliperama, corrobora o fim de seu casamento com Paul _ uma separação que a moça atribui ao fato de seu marido, nela, não enxergar nada além do comum.
Para Paul todos os seres humanos são iguais, e justamente esta idéia, Nana não pode suportar: “Como seria possível amar alguém e não considerá-lo especial, extraordinário?” Mesmo levando em conta a segurança do casamento, como continuar a viver com um homem tão diferente dela, que, em função disso, já não amava mais? Através do rompimento, Nana pensa fazer a coisa certa _ “Eu quis ser muito correta”_, agindo com sinceridade em relação a si mesma, sendo auto-afirmativa, pondo fim na barganha de sua alma, antes constantemente oprimida pelo conforto desesperador do matrimônio. E assim, com os olhos embebidos em lasso, ela se depara com as dificuldades tremendas, _ o que sempre se encontra quando se decide desafiar as forças do mundo objetivo _, ao se ver sem dinheiro e completamente só, ladeada apenas por um sonho_ uma presença incapaz de lhe dar calor, pagar a conta de seu aluguel e comprar sua comida. A audácia na tentativa de reaver sua alma, como conseqüência, lhe traz muitas privações, e acaba por obrigá-la a vender o próprio corpo.
Os objetivos que levam Nana a fechar-se para Paul como mulher, são os mesmos que a forçam, como prostituta, a abrir-se para uma miríade de homens desconhecidos nas ruas parisienses. Mesmo com isso, ela se mostra sempre consciente, autoproclamando-se senhora da própria vida: “Se ergo minha mão, eu sou responsável. Se viro minha cabeça, eu sou responsável. Se estou infeliz, eu sou responsável...”. Acredita na possibilidade de produzir a diferença, tal como o fez o marido de Rebeca, uma de suas colegas prostitutas, o qual, após abandonar mulher e filhos, fez carreira como ator de cinema nos Estados Unidos. Exemplo no mínimo motivador para Nana, mesmo pela semelhança com a sua história, que, talvez, entre outras poucas e, até mesmo, incompreensíveis causas, ainda a mantinha firme em sua caminhada sofista pelas ruelas cinzentas de sua realidade inóspita.
Muito embora a personagem central de “Viver a vida” tenha fé no poder de comandar seus atos e administrar as conseqüências destes, o filme demonstra justamente o oposto: Godard realizou um trabalho belíssimo, de ótica muito crua e naturalista, expondo como o ser humano pode chegar a ser passivo e apaticamente permissivo em situações de extrema subjugação, como no caso de Nana _ uma folha morta sendo arrastada pelo vento do outono _, que segue perdendo sua humanidade à medida que é inserida em um contexto social abjeto, através do qual se transforma em um produto com preço estipulado em cifras exatas, com tempo de vida útil e tudo mais.
Quando Nana é reanimada pela chance de um novo amor, é demasiado tarde. O processo de coisificação de sua pessoa já havia retirado-lhe algumas das mais importantes faculdades humanas, entre elas a vontade e o direito de controlar os próprios passos. E à mercê de uma corrente externa, tão alheia aos seus sentimentos e sonhos, ela é estupidamente transportada para morte. Promovido assim o fim de uma vida curta e sem glória.
Em “Viver a vida” presencia-se a busca incessante de um ideal, que se dá em detrimento da existência. Como o que ocorre com o Pintor d”O retrato oval” (personagem do conto de Edgar Alan Poe, genialmente inserido no filme), que, tão obcecado por sua criação, é dominado pela compulsão e, no anelo de reproduzir o milagre da vida, obtém tão somente a consumação da morte. Exatamente o que acontece com Nana.
“Nana: __ Escapar é um sonho impossível.
Rebeca: __ Por quê?
Nana: __ É a vida.”

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Algumas idéias sobre "O Silêncio"


Silêncio é, entre os que eu vi, um dos filmes mais sexuais do Ingmar Bergman. Mesmo porque a sexualidade é até certo ponto bem explícita nessa obra. As duas personagens centrais, as irmãs Anna e Ester, são dispostas, assim como o que ocorre em Persona, em dois extremos. Ester, a tradutora, traz bem a carga apolínea do ser humano, que busca incessantemente por perfeição, equilíbrio, e acaba por se sufucar em função dessas neuras todas. Já sua voluptuosa irmã, Anna, é o contraponto da situação: pra ela os regimes e o controle não produzem sentido, ela é quente, ela é lúbrica, ela se rende aos instintos, mesmo que durante sua estada no teatro tenha se mostrado enervada ao presenciar o casal transanado ao seu lado. Nesse ponto, na cena do teatro, Bergman faz uma denúncia de alta pertinência contra a hipocrisia humana diante do sexo. O pudor é uma farsa. É justamente para aquela entrega que todas nossas volições nos impelem. Anna é um exemplo perfeito dessa nossa "fraqueza". Enquando sua refinada e fria irmã nos demonstra uma espécie de ser humano mais "evoluída", mais distante da condição selvagem tão própria de cada um de nós. E penso que, talvez mesmo, por essa distancia tão grande de Ester em relação ao escencial, ela tenha se tornado uma moribunda infeliz. A sua forma de amar era asfixiante.. sufucova sua irmã, sufocava seu sobrinho.
O pequeno Johan (filho da Anna) é outra personagem riquíssima. Através dela o filme nos leva de volta para os últimos dias de Adão e Eva no Edén, quando acontece a mácula da inocência pelo conhecimento, o que é exposto belamente em "O Silêncio" nos momentos em que o menino se depara com, a antes inconcebível, humanização/transubstanciação da mãe. A partir de então o garoto passa a ser inserido nas inquietantes condições da vida real, e seu contato com as verdades externas o levam a desenvolver suas pulsões ligadas à destruição _ Johan, através da imaginação, se transforma em um assassino pistoleiro; ele desenha monstros com giz de cera; ele derruba os aviões... Lembrei muito de mim mesmo que, na segunda infancia, decaptava, carbonizava e enterrava no quintal as bonecas da minha irmã.

Mais informações sobre o filme aqui : http://www.2001video.com.br/detalhes_produto_extra_dvd.asp?produto=11409

Provação


Da luta, o vil vapor
Derrama-se no que se vê,
Exclama pelo que se tem.
Às voltas de teu amor,
Desanda e não pode crer,
Anuncia o que nunca vem.

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Na porta de Miguel



Foram apenas dez minutos de pedaladas até a casa de Miguel, o suficiente para me por quase morto, a gotejar por todos os poros um suor muito pegajoso, que se derramava quente por minha pele suplicante. Bati palmas diante do portão cerrado, esforçando-me para que soassem tranqüilas, mas o latejar do meu cérebro e a pulsação nervosa do meu peito impediram-me de constatar se meu fingimento havia obtido o resultado esperado _ eu era pouco capaz de ouvir meus próprios pensamentos. Pus-me a andar de um extremo ao outro entre os limites da mureta da casa, a fim de perscrutar algum movimento interno, até quando consegui captar as vozes masculinas que habitavam dentro daquelas paredes. Eu reconheci a voz vibrante e substancial de Miguel _ a mim era quase possível apalpar cada uma das palavras emitidas por ele. Seu fraseado aberto e vívido cobria a fala inexpressiva de seu interlocutor.
No mesmo instante que o vi surgir pela porta lateral desviei minha vista para um ponto qualquer da rua, evitando descobrir na expressão do rosto de Miguel a forma como ele se sentia em relação a minha visita inesperada. Não apertamos as mãos. Passei a mensagem que lhe devia _ que por seu caráter irrelevante aos fatos que narro não se faz necessária expor aqui _ , transmitindo tudo sem sorrir, sem olhar nos seus olhos.
Miguel comentou achar estranho me ver de bicicleta, que eu estava ofegante e ensopado de suor, se não queria alguma água. Eu aceitei, e muito precipitado me insinuei em direção da casa enquanto ele se virava para buscar a água. Perguntei se haveria problema em deixar a bicicleta ali fora, ao que Miguel respondeu não saber, falando de uma forma desconexa, sem vontade. “Acho melhor...”. E não disse que eu podia pô-la para dentro. Talvez mesmo pelo convite tímido de Miguel eu apenas mudei a posição da bicicleta alguns centímetros, de uma forma que eu pudesse visualizá-la quando estivesse mais adentro, no pátio.
Com meus passos morosos, meus olhos no chão e a camiseta grudada ao meu dorso magro, eu já me distanciava da porta por onde Miguel, silencioso, havia entrado na casa, no momento em que ele reapareceu com o litro cheio de água e o copo a me servir. E foi quando eu voltava a lhe conferir detalhes de alguma eventualidade corriqueira, que vi emergir das sombras da cozinha os olhos felinos de Humberto a se deitarem gélidos por sobre mim. Seu olhar soturno sobrevoava as linhas duras de sua boca que, aliada a um sorriso maquinal, expelia para mim o “olá” mais pálido que eu já ouvi nesta vida. Respondi ao cumprimento muito cordial, pois dessa forma procedo sempre; fingi não ter percebido as fuziladas de Humberto _ muito embora por dentro as sentisse dilacerantes _, e voltei-me exclusivamente para Miguel a fim de concluir aquela conversa vazia, cujo curso e a continuidade já me eram questão de honra.
A aparição “triunfante” de Humberto não durou mais que alguns segundos, e essa atitude corroborava minha opinião: aquele rapaz não suportaria a imposição de minha presença por mais que aquilo. Mas dessa vez, devo admitir, tivera forças o bastante para chegar até a porta e, quase jactancioso, exibir-se pra mim do alto de sua posição soberana. Lembrei-me de certa vez quando, dentro de uma camiseta regata, o encontrei muito garboso a exibir seus braços e ombros trigueiros no passeio público ao lado de um colega seu da musculação. Recordei-me de como pisava forme, de como incidia radiante entre os transeuntes, ereto, ufano. Lembrei-me também da palidez de seu rosto e a secura de seus olhos quando percebeu que, de dentro de um barzinho, eu o observava, muito contemplativo e frio, quase como o faria um cientista diante do objeto de estudo. Revivi na mente aquele momento no qual Humberto hesitava assustado diante de minha análise invasora, eu podia revê-lo ultrajado e olhando em volta a suplicar o socorro que não viria de lugar nenhum; vacilando, perdendo-se debaixo do meu olhar inumano.
Foi devido a essa lembrança a minha conclusão de que aquela tática incisiva e lacônica de Humberto era de fato parte da execução de sua vingança contra mim. Um golpe que, em despeito da rapidez com que fora aplicado, extraia muito das minhas forças, fazia-me vergonhosamente derrotado.
A minha sede se dissipara e não havia bebido nem metade da água que estava no copo, mas para não demonstrar nenhum tipo de abalo continuei, diante de Miguel, a sorver aquelas quantidades insalubres de agonia, dando prosseguimento a minha imperturbável “mise en scene” de moço polido, equilibrado e gentil.
Despedimo-nos enfim, e tal como na minha chegada, o fizemos sem nos tocarmos _ talvez o toque fosse um grande erro, ou talvez por mim ele não fosse justo.